Quando
desci para comprar o jornal, o Quartier
Latin estava ainda embaciado, com aquele jeito outonal que nos faz desejar
mais algumas horas de bom sono.
Minutos
depois, ao estender a mão para pagar o exemplar do Le Figaro, dei por mim a admirar as polainas do Senhor Pierre. De
imediato, fiquei na dúvida se o que ficara perdido pelos séculos XVIII e XIX
seria o bom gosto do meu vizinho ou o meu olhar.
Ali
estavam elas, de couro, com o objetivo de proteger os sapatos do cavalheiro,
belas, remetendo a imaginação para os romances e os poemas que brotaram na Belle Èpoque, um período delimitado por
intensas evoluções culturais que se expressaram em modernos processos de
refletir e nutrir o dia-a-dia, tanto em França quanto no Brasil. Uma época
áurea, constelada, em estética, em inovação, em talento literário. Um período em
que a mente pervagava pelas páginas de Henri Murger, Baudelaire, Balzac,
Anatole France, Émile Zola, Verlaine, Mallarmé, Oscar Wilde, Rimbaud, Olavo
Bilac, Machado de Assis, Martins Fontes, Coelho Netto, e pelas telas de Alfons
Mucha, Toulouse-Lautrec, Edvard Munch, James
Whistler, Georges-Pierre Seurat,
Paul Sérusier, Paul Gauguim, Pierre Bonnard, Edouard Vuillard, Paul Ranson,
Maurice Denis. Todos, artistas que uniram com a sua vocação: Paris ao Rio de
Janeiro. Imensos, em sua infinita qualidade.
A
Belle Èpoque parisiense teve o começo
do seu fim aquando do naufrágio do Titanic,
a 14 de abril de 1912, já a brasileira foi um pouco mais tarde, no começo dos
anos 30, no século XX. E, agora, em pleno século XXI, no Bairro Latino, em
Paris, tenho uma reminiscência daquele ciclo áureo.
Volto
a cabeça para todos os lados, procuro vestígios, outros, da intensidade, da cor
e da luz derramadas na pintura dos mestres citados, tento perceber nos
escaparates algum indício das páginas douradas, tento divisar novos resplendores
naquele bairro e naquela cidade que enamoro todos os dias, porém, encontro
apenas, centenas de pessoas, das mais diversas nacionalidades, ávidas por um
registo fotográfico, a namorar as realidades antigas e distintas, porém, todas,
a trajar a moda confusa da atualidade, as cores banais, as formas esdrúxulas,
de mau corte, péssimo gosto e pior acabamento.
Quando
dou por mim, estou novamente a admirar as polainas do Senhor Pierre e, ele, a
meu lado, a ajeitar dois volumes de Hugo, de recente edição, e a soltar dois
dedos de prosa com a Senhora da mercearia, simpática mulher, roliça, de alvos
dentes e de olhar penetrante. Ali há caso. Faz ela bem, o Senhor Pierre é um
homem de bom gosto e eu de olhar atento e saudosista. Faço um gesto de
despedida e ele, em tom sarcástico lembra-me Baudelaire:
"É preciso estar sempre
embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo
do Tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso
embriagar-vos sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia
ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos.
E se, alguma vez, nos degraus de
um palácio, sobre a grama verde de um precipício, na solidão morna do vosso
quarto, vós acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao
vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que
geme, a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas
são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: 'É
hora de embriagar-vos! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo,
embriagai-vos: embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à
vossa maneira'."
A minha resposta não tardou, embriagada e poética, em versos de Bilac:
“"Ora
(direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".”
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".”
Rui Calisto